26 de janeiro de 2025

TRAPALHADAS NO TEMPO

 



                - Tais Luso de Carvalho


        Pois é, a gente vai vivendo, a vida vai passando, e sempre aparecem pessoas que não reconhecemos mais. E os constrangimentos acontecem com mais frequência: de onde conheço esta criatura?

A pessoa sorri, vem falar… Que situação! E o clima do encontro, inevitavelmente cai. Minha tática é ficar enrolando até dar o clique na minha memória.

Pergunto o que ela tem feito, onde está residindo, como estão os filhos (que filhos?), perguntas rápidas à procura de um indício.

Quem é ela, pelo amor de Deus? - pergunto ao meu inconsciente.

Não poderia lhe dizer que o tempo passou e que não a reconheço. O tempo nos transforma, mas  seria indelicadeza.

Existem pessoas que ao envelhecer conservam os mesmos traços; a mesma fisionomia, às vezes mais bonita, como foi o caso de Caetano Veloso. 

Tenho uma tia incrível, a tia Isolda. Estávamos num supermercado, no recanto dos vinhos. Estava um pouco afastada dela, mas vi um senhor lhe fazendo uma consulta sobre os vinhos e me aproximei um pouquinho. Esse senhor lhe estendeu a mão para agradecer a dica, e perguntou:

- Dona Isolda, a senhora não está me reconhecendo?

Tia Isolda, mais do que depressa:

- Tais, olha só quem está aqui!! hahaha...

Assim mesmo, bem fingida e desnorteada, transferiu o drama para mim.

Consegui reconhecer a criatura, era o seu antigo vizinho! Reconheci o homem pela boca - tinha uma boca de peixe Baiacu! Não tinha como esquecê-lo. Não sei o que acontece, mas quando reconheço alguém é pela boca ou pelos dentes! Acho que me daria bem se trabalhasse num necrotério. Sou atenta a muitos detalhes, então salvei a titia da enrascada.

Porém, maior vergonha passei com minha melhor amiga de colégio que há muitos anos foi morar em Belo Horizonte. Casou-se e ficou por lá. E, com os filhos já adultos e formados, a família resolveu voltar para Porto Alegre. E certo dia, numa confeitaria...

- Oie, Taiiiis!!! Como estás amiga? Não estás me reconhecendo?

Meu Deus do Céu,  fiquei olhando para ela,  meio desnorteada.

- Pois  é  né...

- Sou a Claudinha!

- Báh, trocaste a cor dos cabelos, ficou difícil !

Nossa Senhora!! Piorou, foi um desastre.  A amiga engordou uns 30 quilos, as feições já não eram as mesmas e dei a desculpa dos cabelos? Foi trágico, embora minha intenção fosse boa.

Muito difícil esses encontros... a vida vai passando e a memória pouco ajuda.  Nem a boca, desta vez, reconheci!



Peixe Baiacu -  vizinho da tia Isolda...



 


14 de janeiro de 2025

O CONSELHO DO MENDIGO

 



       

                     - Tais Luso de Carvalho

 

       Há certos momentos, em nossas vidas, que não esquecemos. Muitas vezes relembro coisas maravilhosas, outras nem tanto, mas que tocaram meu coração de modo diferente.

Tempos atrás, ao levarmos nosso cachorro para seu passeio, passamos por um mendigo que ficou olhando, sorrindo para nosso cão, dando-lhe um Buenos dias, amigo! Foi um bom dia pra lá de gauchesco, lá da fronteira:  firme e forte.

Mas no início senti algo de estranho naquela atitude, uma postura um pouco diferenciada de mendigos. Senti, de imediato, a sensação de que o homem era diferente, mas ainda não sabia bem definir. Tinha algo de estranho ali. E comentei com Pedro. Não apresentava a humildade dos desprovidos nem a arrogância dos abastados. Mas algo ficou no ar. E fui caminhar pensando.

Cabelo e barba já revelavam certa idade, embora se mostrasse um mendigo desempenado. Com uma voz forte, deitado sobre um cobertor, trazia entre seus pertences uma cuia e bomba de chimarrão, a tradição gaúcha. E ainda o bom humor para dar um Buenos dias personalizado.

Continuamos o passeio, mas com o mendigo na cabeça. Na nossa volta, ele sorriu novamente para nosso cachorro, de corpo grande, baixinho, peludo, bem tratado e com uma capa de chuva!

Realmente, o quadro era engraçado (ou desgraçado?). Estava chovendo e o mendigo sem proteção, deitado debaixo da marquise, enquanto um cachorro passava com capa de chuva... Na hora senti o desconforto da situação. Um pouco de constrangimento.

Num dado momento, o mendigo gaúcho levantou-se para pegar uma mochila, mas não conseguiu caminhar sem a ajuda de uma velha bengala. Custou a dar 5 passos...  Pedro o ajudou a pegar a mochila que estava mais longe.

Com seu sotaque forte e bonito, o mendigo agradeceu e falou para Pedro:

- Olha, amigo, vou lhe dar um conselho: nunca beba... Fuja disso, fuja!

Nada perguntamos, nenhum dos "porquês" foi acionado. Mas lá no começo eu tinha sentido que havia algo bem diferente com esse mendigo.

Talvez um dia a gente venha a saber da sua história. Por enquanto conhecemos apenas o seu bom dia (Buenos dias), acompanhado de um sorriso diferente. Tão guapo quanto sua saudação.

Tomara que a vida dê voltas e que eu não o encontre mais assim como o encontrei naquele dia, não era um mendigo, ele estava na solidão dos abandonados.

E lutar sozinho é muito difícil.





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3 de janeiro de 2025

ESQUECER PARA RECOMEÇAR

 


 

       - Tais Luso de Carvalho


     Li, certa vez, uma matéria  na Revista Scientific American Brasil, que tratava de um estudo realizado por neurocientistas sobre o processo de formação de memórias. Consistia em alterar, substituir e até mesmo apagar lembranças traumáticas, projetos para que o ser humano fosse mais feliz. 

Pois então, mais um ano, e mais um recomeço. Muitas coisas boas aconteceram, outras nem tanto. É normal, faz parte do nosso aprendizado quando buscamos um melhor viver. A vida não é um oba-oba,  nem tudo é cor-de-rosa. É pé no chão. O resto é bazófia. 

Crescemos, amadurecemos, perdemos, ganhamos, mas continuamos grudados em fatos acontecidos que nunca tiveram a dimensão que um dia lhes foram atribuídos. Na verdade, penso eu, poucas coisas na vida têm grande importância, a maioria é firula, é descartável. Mas estão presentes, e ficam ali  à espreita, para um dia virarem mágoas que com o tempo petrificam e nos fazem vítimas de nós mesmos.

Seria ótimo esquecer de certas coisas que impedem que uma felicidade mais duradoura se aproxime. Esquecer doenças do passado, agressões, mentiras, mágoas etc. É difícil de passar uma borracha? Sem dúvida. Mas não é impossível.

Muitas vezes criamos raízes enormes que se vincularam a um passado remoto que já prescreveu seu tempo de validade.  Não podem pesar mais ao ponto de abrir brecha para a infelicidade.

Antigas mágoas, ingratidão, injustiças… Sim, machucam, mas é preciso uma intervenção para extirpar tal "infecção" e curá-la dentro da gente. É como se tivéssemos um enorme furúnculo, se deixá-lo por muito tempo, a intervenção será cada vez mais invasiva. As sequelas, maiores.

E pensando bem… o que há de tão importante a não ser o fato de levarmos a vida numa boa e com mais leveza? Existem caminhos que dão menos trabalho, honestidade e respeito com nossos semelhantes e com nossos sentimentos. Sermos mais leves conosco é a melhor maneira para vivermos uma vida sem sustos, sem arrependimentos. 

Uma das melhores coisas é quando a gente se conscientiza que precisa mudar, seja aos 40, 60, 80... E melhor ainda é quando conseguimos mudar.

E, enquanto eu tiver consciência, quero sentir o saldo positivo da renovação.