10 de janeiro de 2015

Giuseppe Ghiaroni / Máquina de Escrever

Obra de Ricardo Renedo

               
       
Mãe, se eu morrer de um repentino mal,
vende meus bens a bem dos meus credores:
a fantasia de festivas cores
que usei no derradeiro Carnaval. 

Vende esse rádio que ganhei de prêmio
por um concurso num jornal do povo,
e aquele terno novo, ou quase novo,
com poucas manchas de café boêmio.

Vende também meus óculos antigos
que me davam uns ares inocentes.
Já não precisarei de duas lentes
para enxergar os corações amigos.

Vende, além das gravatas, do chapéu,
meus sapatos rangentes. Sem ruído
é mais provável que eu alcance o Céu
e logre penetrar despercebido.

Vende meu dente de ouro. O Paraíso
requer apenas a expressão do olhar.
Já não precisarei do meu sorriso
para um outro sorriso me enganar.

Vende meus olhos a um brechó qualquer
que os guarde numa loja poeirenta,
reluzindo na sombra pardacenta,
refletindo um semblante de mulher.

Vende tudo, ao findar a minha sorte,
libertando minha alma pensativa
para ninguém chorar a minha morte
sem realmente desejar que eu viva.

Pode vender meu próprio leito e roupa
para pagar àqueles a quem devo.
Sim, vende tudo, minha mãe, mas poupa
esta caduca máquina em que escrevo.

Mas poupa a minha amiga de horas mortas,
de teclas bambas, tique-taque incerto.
De ano em ano, manda-a ao conserto
e unta de azeite as suas peças tortas.

Vende todas as grandes pequenezas
que eram meu humílimo tesouro,
mas não! ainda que ofereçam ouro,
não venda o meu filtro de tristezas!

Quanta vez esta máquina afugenta
meus fantasmas da dúvida e do mal,
ela que é minha rude ferramenta,
o meu doce instrumento musical.

Bate rangendo, numa espécie de asma,
mas cada vez que bate é um grão de trigo.
Quando eu morrer, quem a levar consigo
há de levar consigo o meu fantasma.

Pois será para ela uma tortura
sentir nas bambas teclas solitárias
um bando de dez unhas usurárias
a datilografar uma fatura.

Deixa-a morrer também quando eu morrer;
deixa-a calar numa quietude extrema,
à espera do meu último poema
que as palavras não dão para fazer.

Conserva-a, minha mãe, no velho lar,
conservando os meus íntimos instantes,
e, nas noites de lua, não te espantes
quando as teclas baterem devagar.

___________________________________
Giuseppe Artidoro Ghiaroni – Nasceu em Paraíba Do Sul, (RJ), no dia 22 de fevereiro de 1919. Foi Jornalista, poeta, redator, tradutor e radialista.  
Faleceu em  2008, aos 89 anos.



                                    
  Poemas do LP:
                                                                          
          A máquina de escrever
Homenagem
Doce nome de Estela
A luz de Maria
Injustiça
Previsão
Dia das mães
A palavra querida
Beijos
Veneração
Não me faças sonhar
Respeito
Tereza
Beijo
Aquilo

Neste blog: O Dia das Mães

21 comentários:

  1. Muito bom. Não conhecia o autor embora seja fã de muitos poetas brasileiros.

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  2. Oi Taizinha... Em 1° lugar é fascinante ver uma máquina antiga como esta, onde simboliza vida e morte, apego e desapego...e no final das contas, deixar as malas e permanecer vivo entre letras e palavras, versos e poesias!
    Um beso!

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  3. Anônimo15:09

    Uma melancolia real!
    Abraços.

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  4. Amiga, como vai!

    Coincidentemente me enviaram via e-mail essa linda e emocionante poesia do ilustre Giuseppe e buscava eu na rede o texto para colocá-lo em meu blog!

    Agora, ainda o farei, mas indicarei que a leitura seja feita aqui em vosso espaço, portante, em rima, já lhe deixo um abraço!

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  5. Oi querida, foi mesmo esse poema que eu havia lindo aqui há algum tempo, e como agora me emocionei, eu que gosto de escrever, mas nem um nada perto desse poeta, senti também o apego à esse instrumento, que agora converteu-se em PC, notebook, netbook, Ipad e outros... Lindo, amei reler

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  6. Adorei reler esse poema tão lindo!! Valeu! bjs praianos,chica

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  7. Um lindo poema a esta velha amiga de noites perdidas dos iluminados das palavras.
    Uma real loa à maquina.
    Grato pela partilha Tais.
    Uma linda semana a voce.
    Meu terno abraço de paz e luz.
    Bju

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  8. Bom dia querida Tais..
    uma beleza de poesia e até contei as métricas.. perfeição mesmo..
    quando vi a foto da máquina de escrever lembro que fiz de tudo para tentar comprar a da minha falecida prima..
    não foi possivel pq a minha tia não vendeu.. eu sou das antigas rsrs
    gosto muito delas e de usar tinteiro srs
    dá trabalho mas o manuscrito fica uma graça só.. bjs e um lindo dia

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  9. Querida Tais:
    En primer lugar ¡Feliz 2015!
    En esta entrada me ha emocionado la magnífica obra de Ricardo Renedo “Máquina de Escrever”, primero por su belleza y después por esa máquina de la marca Corona con carro plegable. Esta máquina me ha trasladado a mi infancia, pues mi padre tenía una igual en su despacho y creo que ahora la tiene mi hermano mayor.
    El poema es un magnífico y melancólico acompañante del paso del tiempo.
    Felicidades y un fuerte abrazo

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  10. Olá querida, Tais.
    Você foi muito feliz em sua postagem,pois o poema além de lindo e bem construído nos mostra que sempre há algo que queremos que se perpetue conosco, na eternidade.
    Há quantas máquinas podemos nos referir que passaram a dividir conosco os momentos mais íntimos de nossas pobres e tristes noites. Parabéns! Grande beijo!

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  11. Belíssimo esse poema do Giuseppe. Ele era demais!
    Taís, que a paz faça morada em nossos corações!

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  12. Um belo poema, comovente, bem escrito!

    * Não conhecia o autor.


    Saudações poéticas!

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  13. Olá, Tais
    Bom dia, este poema do Giuseppe A. Ghiaroni é uma obra prima com versos e rimas bem colocadas, lirismo profundo e carregado de subjetividades, a sua declaração de amor à máquina de escrever, que usava, extensão de suas mãos e do seu cérebro, no registro de seus momentos mais íntimos ...tive a oportunidade de ouvir o poemas de Dia das Mães e dos Pais, na voz de Paulo Gracindo...
    Agradeço pelo carinho,um abençoado e Feliz 2015, para ti e familiares, belo domingo,beijos!

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  14. Um dia, deixamos as malas assim, se tivermos tempo!
    Foi uma linda escolha.
    Bj

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  15. Gracias por estar en la lista de nuevos seguidores como siempre es un placer pasar por su blog y deleitarse con sus bellos poemas Saludos

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  16. Querida Tais, como foste de 2015? Com certeza, na paz familiar, e que Deus a conserve assim.
    Um poema de uma beleza nostálgica ímpar, adorei. Já conhecia, mas pelo sobrenome do grande Ghiaroni. E agora, vendo a foto do seu intérprete em disco, Paulo Gracindo, com aquela voz e interpretação que o imortalizaram, fico a imaginar a delícia de ouvir todos os poemas desse mestre das radio novelas que se passavam na inesquecível Rádio Nacional.
    Bela escolha! Parabéns, amiga! Bjsss

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  17. Excelente blog parabéns!

    http://www.valdeirvieira.com/unique-residencial/

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  18. Um tanto fantasmagórico, minha querida amiga Tais, mas uma metáfora do que realmente importa ao poeta, ao escritor, sua ferramenta que entre o concreto e o abstrato resume toda sua vida, o mais não importa, tudo é negociável, como na vida, como em nossa vida, mas cada um de nós tem o seu tesouro invendável, sem preço...faz dias que li este poema, mas fiquei meio sem palavras diante de tanta perfeição. É muito bom estar aqui sempre no meio de tuas crônicas, mas é bom demais também apreciar, me alimentar dos poemas que escolhes e nos brinda com este post. Sempre um imensoprazer de estar aqui,minha amiga.
    ps. Carinho respeito e abraço.

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  19. Anônimo17:33

    Gostaria de encontrar o poema "Não me faças sonhar" - de Ghiarone pois memorizei e hije ne esqueço de algumas estrofes... oondinarafael@uol.com.br

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  20. Boa tarde: clique nesse site, declamado pelo Paulo Gracindo.

    https://www.4shared.com/mp3/Bjv4W5yoba/11-_no_me_faas_sonhar.htm?locale=pt-BR

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  21. A Máquina de Escrever, 1997, Scortecci Editora.

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Muito obrigada pelo seu comentário
Abraços a todos
Taís