- Taís Luso de Carvalho
Até o momento estou tentando me acostumar à certas coisas; estou com receio de perder minha identidade por uma coisa tão banal. Vejam vocês...
Há anos moro numa rua arborizada, cheia de flamboaiãs floridos e de belos jacarandás: suas flores violáceas... Hum, que romântico.
É um prédio relativamente calmo, cujos vizinhos preocupam-se cada um com sua vida, administrando seus problemas pessoais - de caráter existencial ou de ordem apenas prática. Mas tudo muito discreto. Tão discreto que chega a ser saudável demais para os padrões atuais – hoje, roda-se a baiana quando alguém olha meio torto. Juro que eu estava um pouco aflita com tanta paz.
Sei que nada é eterno. Certo dia, uma camionete - Van que vende cachorro-quente - foi chegando e deu com os costados quase em frente ao meu prédio. Toda bonitinha, colorida, muito pop. E desde então, ali fez o seu ponto. Este tipo de comércio multiplica-se espantosamente: pão, salsicha, molho e gororobas. Adoro cachorro quente, principalmente em aniversário de criança.
Mas fiquei apoplética quando vi sair da pequena Van, um festival de banquinhos, caixotes, cesta de lixo, caixas de refrigerantes e até uma poderosa e psicodélica vassoura vermelha. Muito fashion. Tudo isso, pertinho do meu prédio, ignorando os flamboaiãs e jacarandás.
A partir do primeiro dia, começou a despertar em mim, criatura da paz, algo estranho e desconfortável. Aquele boteco ambulante, o povo esparramado e com uma fome de pesar na consciência, abocanhando aquele cachorro enorme... Isso realmente mexeu com meus nervos; não gosto de ver ninguém com tamanha fome. Mas é o que mais tem neste feliz país tropical.
Porém, até por problemas de consciência, para ter a certeza de estar desprovida de qualquer preconceito gastronômico e social, andei comprando o tal do cachorro. Certamente, regado à Coca-Cola mata qualquer fome. Desce bonito.
Na verdade, não era um cachorro-quente que estaria abalando meus nervos: era o Homem do cachorro-quente! Essa Van meiga e singela já veio predestinada a fazer o maior rebu no quarteirão. Nossa paz foi pro brejo. Descobrimos, poucos moradores, que nem só de cachorro vivia o homem... A maldita Van tornou-se o QG da fofoca, de intriga e de discórdia entre uma vizinhança até então pacata. Sua permanência entre nós tornou-se um pesadelo, e os mais avisados, dela já buscavam distância.
Com o passar do tempo, fui percebendo que senhoras vistas como sisudas e recatadas davam um Bom-dia um tanto exagerado, cheio de salamaleques. Seria carência? Solidão?
E no Natal? Dezenas de maluquetes do quarteirão levavam suas oferendas lá na Van, para agradar aos seus tripulantes e, principalmente à mulher do Homem do Cachorro-quente. O homem tornou-se o Ouvidor do quarteirão! O Ouvidor das carentes e solitárias que por ali passavam. Ficou íntimo.
Mas e eu? Como estou agora? Flagrei o meu lado ridículo e curioso: chego na minha sacada e meus olhos batem na Van à procura do Homem do Cachorro-quente: o que estará fazendo agora? E aquela horrenda vassoura vermelha? Quem estará, no momento, desfiando o seu rosário de lamúrias aos tripulantes da Vanzinha? Lamento: ah!... Se ao menos eu gastasse meu tempo correndo à janela pra ver uma banda passar cantando coisas de amor...
Mas percebo, no momento, que o motivo do meu abalo é toda uma conjuntura: ontem encontrei uma amiga - de cursinho - a três quadras do meu prédio; conversamos amenidades e combinamos um encontro em minha casa. Expliquei onde morava, dei detalhes do edifício, características do jardim e nada da criatura situar-se. Num certo momento ela parou, pensou e soltou:
- Amiga, agora me liguei! Sei onde moras!
- Uf ! Ainda bem, afinal, moramos no mesmo bairro!
- É no Edifício do HOMEM DO CACHORRO-QUENTE!
Fiquei meio moscona, mas rapidinho me refiz:
- É isso aí, guria! Acertooooouuuu!
Chacoalhei meus neurônios, dei uma equilibrada nos hormônios e por fim descubro e desnudo meu inconsciente, aceitando, conformada, o inusitado: ontem, morava numa linda rua arborizada, num edifício tranquilo com um belo jardim rodeado de palmeiras; hoje, moro no Edifício do Homem do Cachorro-quente, rodeada de banquinhos, caixotes e fofocas, e ainda convivo com uma maldita e carcomida vassoura psicodélica, dependurada num ornamental pé de jacarandá!
rsrs, que horror! Vou prestar mais atenção na minha rua, aqui perto tem um meio fuleiro. E já comi o cachorro do homem! Vou ver se ele é fofoqueiro.
ResponderExcluirAdorei a vassoura!
Um abraço, Giselda.