- Tais Luso de Carvalho
Ana foi uma criança educada no capricho e no exagero: aulas de balé, de inglês, francês, natação, etiqueta... Não havia tempo para o ócio, para vivenciar um pouco mais sua infância. Mas cresceu e tornou-se uma mulher interessante e refinada. Casou-se com o Braga, um homem bonito e de bom gosto. Tudo dentro dos conformes: estudar, casar, ter um bom emprego e tentar ser feliz.
Certa noite, movida pelo cansaço, Ana foi para a cama mais cedo do que de costume. Um tanto inquieta, ligou a televisão e deixou que seus olhos vagassem à procura de algum programa interessante. Mas o que encontrou naquele início da madrugada foram programas inchados de erotismo. Seus olhos saltaram das órbitas ao se depararem com insinuantes garotas que encenavam exaustivos bailados de mãos que percorriam corpos franzinos e solitários, que disfarçavam suas almas machucadas em busca de ilusões.
Ana cansou-se daquele tédio tendo em vista ter ao seu lado o homem que amava, o grande Braga, fartamente distribuído em um metro e oitenta. Desinteressada, mudou de canal.
Deparou-se, então, com outra situação: numa grande mesa – alguns homens conversavam sobre futebol, mulheres e certos fetiches, como os delicados pezinhos femininos passeando sobre poderosos sapatos de salto alto. Era um luxo, um glamour, um fetiche ao gosto de todos.
O relato que se desenrolava nesse programa foi encantando Ana. Relatos curiosos, mas comedidos. Dentre esses amigos, quem se manifestou a certa altura foi o brutamontes Nelsão - malhado e com tórax de leão. Nelsão revelou que tinha em seu quarto, em cima da cômoda, um delicado sapatinho vermelho, salto alto, bico fino. Sim, Nelsão adorava a delicadeza daquele vermelhinho que o induzia ao sono. Um brutamonte, mas com uma doce alma.
Com os olhos esbugalhados e com os ouvidos atentos, a mulher deliciava-se com a entrevista daqueles homens, mas não entendia a razão de tanto alvoroço a ponto de despertar tamanho encanto. Mulheres não devem entender de tais fascínios – pensou Ana.
Muitos deles faziam questão de arrolar os seus depoimentos naquele encontro de amigos, não escondendo o instinto romântico que possuíam. O tal sapatinho vermelho fez Ana subir aos céus. Com grande ansiedade, só pensava em exercitar o seu lado consumista e ir à procura de um poderoso sapato de salto alto, que por certo iria agradar o Braga.
Pouco depois falou Valério. Valério era delicado e meigo, e com belos traços. Não tinha aquele estereótipo do machão e nem ligava para saltos altos. Era obcecado por pés e tinha uma preferência: dedos. Mas não eram dedos comuns que agradavam o belo Valério: o segundo dedo teria de ser bem maior do que o dedão.
Tudo muito esquisito naquela gente louca e fissurada por pés, dedos, orelhas, pescoços e pantorrilhas. Realmente era demais para Ana entender...
Valério narrou toda sua história, questionando e filosofando sobre todos os porquês dos dedos, numa explicação profundamente filosófica e freudiana. Para Ana, ainda atrapalhada com aquela entrevista, a história estava confusa, mas muito interessante: aqueles dois dedos disformes... por quê?
Ana parecia uma criança curiosa, queria entender mais sobre o assunto. Mas jamais ficou sabendo o porquê da história dos dedos. No auge da entrevista, quando Valério começou a relatar a sua obsessão por aqueles dois dedos anormais, Braga saiu do banho e veio para a cama.
Deitou-se ao lado de Ana e colocou os pés em cima de duas almofadas que estavam sobre a cama. A mulher que nunca havia se detido nos dedos dos pés de Braga, levou um susto. E caiu num quaraquaquá...
Pasma, e com quinze anos de casamento no currículo, a mulher estava atestando que o impulsivo marido, o seu Braga, aquele homenzarrão educado, mas temperamental e machista, e por vezes irritante, tinha exatamente os pés grandes, fortes e com os dedos disformes. Os dedos que Valério tanto havia falado.
Pensou em cutucá-lo para zombar... Mas virou-se para o lado e resolveu dormir. Havia muita coisa empoeirada, que não queria mexer. Mágoas que o tempo não apaga. Mágoas soterradas. Seria bom não levantar a poeira do velho baú e não quebrar o pacto feito com o silêncio. A madrugada conseguiu seguir mansa.
Ana foi uma criança educada no capricho e no exagero: aulas de balé, de inglês, francês, natação, etiqueta... Não havia tempo para o ócio, para vivenciar um pouco mais sua infância. Mas cresceu e tornou-se uma mulher interessante e refinada. Casou-se com o Braga, um homem bonito e de bom gosto. Tudo dentro dos conformes: estudar, casar, ter um bom emprego e tentar ser feliz.
Certa noite, movida pelo cansaço, Ana foi para a cama mais cedo do que de costume. Um tanto inquieta, ligou a televisão e deixou que seus olhos vagassem à procura de algum programa interessante. Mas o que encontrou naquele início da madrugada foram programas inchados de erotismo. Seus olhos saltaram das órbitas ao se depararem com insinuantes garotas que encenavam exaustivos bailados de mãos que percorriam corpos franzinos e solitários, que disfarçavam suas almas machucadas em busca de ilusões.
Ana cansou-se daquele tédio tendo em vista ter ao seu lado o homem que amava, o grande Braga, fartamente distribuído em um metro e oitenta. Desinteressada, mudou de canal.
Deparou-se, então, com outra situação: numa grande mesa – alguns homens conversavam sobre futebol, mulheres e certos fetiches, como os delicados pezinhos femininos passeando sobre poderosos sapatos de salto alto. Era um luxo, um glamour, um fetiche ao gosto de todos.
O relato que se desenrolava nesse programa foi encantando Ana. Relatos curiosos, mas comedidos. Dentre esses amigos, quem se manifestou a certa altura foi o brutamontes Nelsão - malhado e com tórax de leão. Nelsão revelou que tinha em seu quarto, em cima da cômoda, um delicado sapatinho vermelho, salto alto, bico fino. Sim, Nelsão adorava a delicadeza daquele vermelhinho que o induzia ao sono. Um brutamonte, mas com uma doce alma.
Com os olhos esbugalhados e com os ouvidos atentos, a mulher deliciava-se com a entrevista daqueles homens, mas não entendia a razão de tanto alvoroço a ponto de despertar tamanho encanto. Mulheres não devem entender de tais fascínios – pensou Ana.
Muitos deles faziam questão de arrolar os seus depoimentos naquele encontro de amigos, não escondendo o instinto romântico que possuíam. O tal sapatinho vermelho fez Ana subir aos céus. Com grande ansiedade, só pensava em exercitar o seu lado consumista e ir à procura de um poderoso sapato de salto alto, que por certo iria agradar o Braga.
Pouco depois falou Valério. Valério era delicado e meigo, e com belos traços. Não tinha aquele estereótipo do machão e nem ligava para saltos altos. Era obcecado por pés e tinha uma preferência: dedos. Mas não eram dedos comuns que agradavam o belo Valério: o segundo dedo teria de ser bem maior do que o dedão.
Tudo muito esquisito naquela gente louca e fissurada por pés, dedos, orelhas, pescoços e pantorrilhas. Realmente era demais para Ana entender...
Valério narrou toda sua história, questionando e filosofando sobre todos os porquês dos dedos, numa explicação profundamente filosófica e freudiana. Para Ana, ainda atrapalhada com aquela entrevista, a história estava confusa, mas muito interessante: aqueles dois dedos disformes... por quê?
Ana parecia uma criança curiosa, queria entender mais sobre o assunto. Mas jamais ficou sabendo o porquê da história dos dedos. No auge da entrevista, quando Valério começou a relatar a sua obsessão por aqueles dois dedos anormais, Braga saiu do banho e veio para a cama.
Deitou-se ao lado de Ana e colocou os pés em cima de duas almofadas que estavam sobre a cama. A mulher que nunca havia se detido nos dedos dos pés de Braga, levou um susto. E caiu num quaraquaquá...
Pasma, e com quinze anos de casamento no currículo, a mulher estava atestando que o impulsivo marido, o seu Braga, aquele homenzarrão educado, mas temperamental e machista, e por vezes irritante, tinha exatamente os pés grandes, fortes e com os dedos disformes. Os dedos que Valério tanto havia falado.
Pensou em cutucá-lo para zombar... Mas virou-se para o lado e resolveu dormir. Havia muita coisa empoeirada, que não queria mexer. Mágoas que o tempo não apaga. Mágoas soterradas. Seria bom não levantar a poeira do velho baú e não quebrar o pacto feito com o silêncio. A madrugada conseguiu seguir mansa.
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Taís,
ResponderExcluirTaí um conto de qualidade. Na verdade um bom retrato do que acontece entre quatro paredes com a maioria dos casais ditos "normais" da nossa sociedade um tanto machista, um tanto consumista e, na maioria dos casos, um tanto reprimida. Os fetiches, o mais da vezes, são o "motor" que turbina relacionamentos para não caírem na monotonia. Belo enfoque, parabéns. JAIR.
Haja 'estofo' para saber dar a volta por cima...Gostei de ler.
ResponderExcluirBeijo
Oi Taís, tudo bem? achei muito legal, ficou lindo seu conto. Parabéns. Um grande abraço do Bicho do Mato.
ResponderExcluirQuerida Tais,
ResponderExcluirSeu conto é uma obra-prima, que propõe reflexão do título ao ponto final.
"A madrugada conseguiu seguir mansa". Mas será a mansidão, significando a solidão a dois, o máximo que se espera de um casamento de 15 anos? Um casamento dentro dos conformes, é verdade, com alguém que preenche perfeitamente o perfil procurado. Um homem bonito e de bom gosto, ideal para se ter ao lado durante as conveniências da sociedade. Mas alguém de quem Ana sequer notou o formato dos pés ao longo de tantos anos! Na realidade, um casamento de aparências, mas vazio em seu conteúdo, carente de companheirismo ou mesmo de atração. Uma relação superficial e incapaz sequer de despertar desejos.
No meio da madrugada, surgiu para Ana a oportunidade de repensar essa relação. Mas mexer nela significaria "levantar a poeira", abrir feridas. Faltou coragem para Ana, que escolheu a comodidade de deixar tudo como estava. E a madrugada, na ilusão de Ana, conseguiu seguir mansa. Aparentemente.
Maravilhoso conto, digno de análise acadêmica, tão relevante o conteúdo que preenche suas linhas e entrelinhas. Parabéns, minha amiga!
Muitas vezes os fetiches são importantes para reavivar os relacionamentos mornos,e muitas vezes já quase apagados.
ResponderExcluirAdorei!
Um beijo e uma ótima semana!
Mariangela
Oi Taís!
ResponderExcluirBela crônica!
Eu confesso que sou atraida por pés, ninguém passa por mim sem que eu dê uma boa olhada neles.rsss
É, depois deste tempo todo sem olhar bem o maridão e o vê-lo por completo não dá para remexer nas feridas aparentemente saradas e viver com elas sem remédio depois.
Beijinhos e uma linda semana!
E é tão fácil fazer as pessoas felizes!
ResponderExcluirBeijos
Que maravilha de conto!
ResponderExcluirNada como uma escritora completa!
Que delícia de leitura!
Beijos!
Como às vezes nos surpreendemos com detalhes nunca antes percebidos, conforme aconteceu com a protagonista, esposa silenciada pelos anos de convivência repressora.
ResponderExcluirUm conto feminino e delicado.
Uma sensível narrativa, Taís.
Bjkas,
Calu
Creio que é sempre tempo para se mencionar detalhes antes não percebidos, descobertas, assim como fazer uma limpeza e retirar o pó conservador e impeditivo de renovação do brilho.
ResponderExcluirVocê foi ótima! Bjs.
Taís, estou aqui para agradecer tua adesão ao meu modesto espaço. Obrigado por me seguir. Estou contente por ter mais um seguidor - seguidora, no caso específico - de Porto Alegre, pois a maioria dos meus seguidores são de outras cidades. Gostei do teu conto. Um abraço. Até a próxima. Tenhas uma boa noite.
ResponderExcluirOla,taí uma excelente história.Gostei muito.Grande abraço.
ResponderExcluirBom dia, Tais.
ResponderExcluirUma história muito buena que uma poderia se refletir .. as vezes tem que fazer "vista grossa" para continuar a harmonia, mas... tudo tem seu limite.
Envio um grande abraco e tenha usted um dia feliz.
EU AMO ESSE INSTRUMENTO DE TORTURA.
ResponderExcluirDA QUANDO ENGORDEI,COMECEI A SENTIR DORES, QUANDO USO, COMPREI UM SALTINHO DE GEL, E CONTINUO USANDO DO MESMO JEITO
BACI
Uuuuuuiiiiii!!! Abafa o caso... kkk
ResponderExcluirE quantos casais não agem assim...caso contrário não haveria mais casamentos!
Beijão
Olá! Sou eu novamente, a Marcia(grega), entrando com um perfil diferente... Quero te convidar para visitar e conhecer o blog da minha empresa de Midia Social, ZixPlus.
ResponderExcluirMais uma nova empreitada que começo, com o auxílio de minha sobrinha que mora na Flórida.
Construímos e reformamos blogs e websites, bem como, elaboramos perfil nas diversas mídias socais, divulgando e dando manutenção.
Precisando de nossos serviços é só avisar!
http://zixplus.blogspot.com
Bjussss
Taís,que beleza de conto!Muito interessante a maneira de abordar o assunto dos relacionamentos e a protagonista descobrir os gostos masculinos tb!Ficou genial!Bjs e meu carinho!
ResponderExcluirQuerida amiga
ResponderExcluirPenso que viver
é semear com palavras,
imagens e sonhos,
palavras que acordem
o belo,
o justo
e o melhor do mundo
em outras vidas.
Que este seja o nosso
compromisso com a vida
Aluísio Cavalcante Jr.
Olá Taís, quanto tempo, né?!?
ResponderExcluirGostei, a vida como ela é...
Bjos.
Oi Taís,
ResponderExcluirTem dias que o conhecimento chega tarde em nossas vidas, ou será que é a história que já chegou ao fim sem terminar o livro.
O mundo está cheio de Ana's e Braga's...
Beijos Taís
Leila
Minha amiga! Adorei! Já estava com saudade de tuas crônicas! Te encontrei num blog amigo e disse para mim mesma, kkkkk, vou lá matar as saudades.... Dia 07 de agosto é aniversário de um (01)ano do Blog! Espero você! Obrigada pelo carinho e pelos comentários sempre tão gentis!
ResponderExcluirUm abençoado e feliz final de semana!
Abraço carinhoso!
Elaine Averbuch Neves
http://elaine-dedentroprafora.blogspot.com.br/
Boa noite minha querida amiga, tá aí um tema ue muito me encanta,
ResponderExcluire tenho soneto ao salto alto viu srsrs,
sou apaixonado pela beleza dos pés femininos, e mais ainda pelas unhas francesinhas, é a primeira coisa que olho em uma mulher, elas nem percebem srs mas eu já miro na rua mesmo se mãos e pés tem francesinha, tanto que a capa do meu terceiro livro tem uma mão com francesinha né ssr
acho delicado isso na mulher, e elas tem de cuidar muito bem, pelo menos a mim encanta sempre, bjs e feliz noite